A ordem das coisas
March 4, 2018
No exato momento em que um intervalo comercial termina, a TV apaga e a mulher salta na poltrona com um clarão que explode na sala, afugentando a penumbra - nuvens pesadas lentamente ofuscaram a claridade do dia. Logo após o clarão, o estardalhaço descontrolado do ar fugindo chacoalhou as janelas. A penumbra desce novamente sobre a casa.
Recuperada do susto, a mulher caminha até uma janela e olha o desespero com que a chuva cai do céu. A água se desgarra das nuvens em aflições de refugiados: enormes volumes desmancham-se apressadamente rumo a terra como se, a qualquer momento, fossem impedidos de escapar.
Em pouco tempo, a água, ansiosa, sobe sobre as próprias costas, solta-se estabanada rua abaixo em líquidas acrobacias, avoluma-se, cria enxurradas alimentadas pela correria cheia dos gritos molhados do líquido em fuga.
A mulher se espanta com a fúria desse domínio aquoso. O mundo quase submerso no aguaceiro, entregue ao temporal, rendido às vergastadas do vento carregado de chuva.
Vez ou outra, a penumbra é vazada pelas lambidas de luz dos relâmpagos - surgem e desaparecem como fortuito corpo a passar pela janela, um mensageiro a dissipar em luz e som o apocalipse do temporal.
Protegida, seca, a mulher tem o estranho sentimento de não pertencimento ao mundo. O silêncio ordeiro de sua casa isola a mulher dos corpos encharcados, dos restos largados na rua e que descem carregados em abraços pela água, apenas a umidade se assanha por entre frestas e fareja o ambiente.
A energia volta, a TV é novamente uma possibilidade.
E o mundo seco de daqui a pouco vai sair em imagens pela tela dizendo-lhe estar tudo bem, que a ordem das coisas habita também a sua sala.