Sons úmidos e secos
February 5, 2018
Ela bem dissera que achara o apartamento muito pequeno. É certo que não se expressara claramente, pois o que mais a incomodara foi a espessura das paredes. Batera os nós dos dedos em uma, e o som choco que ouvira eliminou a pouca empolgação que tentava alimentar.
E, diante do namorado, que havia dito ser bom o aluguel, as vantagens de ser próximo do trabalho dos dois, que tinham pouco tempo pra decidir, não quisera ser ainda mais chata. Apenas abrira os braços num gesto largo, encurtara a distância entre as mãos e reforçara o que dissera à entrada: “achei pequeno”.
Pouco mais de dois meses após se mudarem, está na cozinha com ouvidos atentos aos barulhos. Talvez seja por birra, nascida no momento em que aceitou que o alugassem, mas desde que se mudaram ela nunca prestara tanta atenção aos ruídos como agora.
O marido toma banho, e ela é capaz de escutar os estalos da água no piso do banheiro, uma voz líquida a lhe descrever os movimentos do homem em açoites de água contra o piso.
Quando deseja assistir à TV até mais tarde, tem de ajustar o volume tão baixo que dificulta até mesmo a ela ouvi-la, caso contrário os vizinhos reclamam. Pois os apartamentos próximos compartilham uma convivência de sons úmidos e secos, a preencherem o ar com os movimentos de suas vidas.
Assim, ela sabe o dia e a hora em que a vizinha da esquerda lava roupas; indigna-se uma noite ou outra, quando a vizinha da direita finge falsetes de orgasmo; irrita-se nos momentos em que a criança do apartamento acima do seu se dispõe a brincadeiras de corrida.
O marido desliga o chuveiro. Um silêncio estrangeiro tateia o ar. A mulher ouve então um som fino de água corrente - o degelo da geladeira traz um riacho tímido para dentro da cozinha.
Fecha os olhos e imagina-se na amplidão de uma planície, o riacho nascendo-lhe aos pés. Sente o toque de uma paz esquecida, quase palpável de tão amestrada.
Logo as paredes ocas recomeçarão a lhe trazer as vidas quotidianas nos sons indomados que reverberam.