Passividades
January 21, 2018
Há uma calça, três blusas, uma toalha, um lençol e algumas peças miúdas agitando-se no varal, presas pela tenacidade espartana dos prendedores.
Agitam-se com o frenesi dos discursos libertários, mas é apenas o vento a lhes insuflar revoltas. Estivesse o ar parado, permaneceriam em repouso, sem saber o que as aguarda, nem quem nem o porquê as colocaram ali.
As mãos que as prenderam estão distantes, não cuidam de lhes saber o estado, não se importaram de atentar se as prendiam pelo meio do corpo; ou se pelos pés, em vertigens de ponta-cabeça; ou se pelos braços, no aparente conforto de ver o mundo em seu eixo.
Mas as peças precisam que as mãos as pendurem - única maneira de se livrarem da água a lhes penetrar as fibras e que as deixam com o fastio das digestões difíceis. Se encharcadas, nem o mais decidido vento é capaz de lhes despertar manifestações de ira em esvoaçamentos de tecidos.
Um cão passa distribuindo cabeçadas no ar em curiosidades de focinho. Chega-se ao vaso colocado rente ao muro, quase sob as peças, levanta uma pata e o marca como sua propriedade mais uma vez - essas mesmas peças já viram, silentes, em outros dias, essa reafirmação de posse.
De repente, o sol se esconde na timidez de nuvens, a jogarem com os raios a possibilidade de eles se mostrarem ou não. Quando as nuvens resolvem esconder o sol de vez, as mãos vêm alisar os tecidos para sabê-los livres da água. Há umidade pouca. O céu diz que guardará a chuva por mais algum tempo. E as mãos desaparecem.
Nascidas para serem guiadas, as peças esperam - seres animados de uma passividade bovina, confinados ao pasto árido e estreito de um quintal.