Vidas líquidas
October 9, 2017
O rio olha tranquilo a convivência de suas águas até entregá-las ao mar.
Ao longo de todo o leito, as águas se encontram e caminham juntas numa cumplicidade a criar as correntes em intimidades de gotas.
Águas profundas tateiam-se na frialdade de sua noite perene, céticas dos rumores a virem das águas rasas de que, acima das profundezas, existe a possibilidade de as águas se verem, de verem os seres que lhes enfrentam as correntes - seres de que as águas profundas somente tomam conhecimento ao lhes atropelar os corpos esguios.
As águas rasas não se importam com esse ceticismo e continuam a tentar lhes explicar a luz, seguem também a dizer sempre sobre algo que desperta ainda mais ceticismo às águas profundas: o calor.
Como explicar tepidez e claridade a quem tem na noite e no inverno companhias a lhes preencherem todas as horas?
Ao final da viagem, quando o mar fizer o definitivo acolhimento, a surpresa será o professor a encerrar todo o ceticismo, mostrando-lhes em contundentes movimentos de ondas salgadas o que são a luz e o calor.
Mas, no momento, nem as águas profundas nem as rasas sabem o que as espera: deslizam pelo leito do rio no atávico impulso, que sabem ser seu dever.
A tranquilidade do rio é interrompida quando uma tempestade joga sobre si águas intrusas. Águas que insuflam revolta nas outras; que sobem nos ombros das águas rasas para escalarem barrancos, para avançarem sobre a terra e engolirem matos, buracos e tocas numa voracidade em abarcar o mundo nos mil braços de seu corpo sem osso.
Então, tudo o que o rio deseja é que suas águas se livrem dessa febre, que despejem logo as intrusas na foz onde as espera o mar - amansador de todas as águas, a domá-las com sal e espuma.