Pedras
April 30, 2017
Enfim o sossego.
Todas as pedras que lhe competem foram mais uma vez carregadas ao topo do Fim do Dia e esperam a noite para guiá-las novamente montanha abaixo.
Acaba de chegar em casa e ouve o escuro dizer-lhe a ausência da mulher, certamente ainda ocupada em levar suas próprias pedras ao topo.
Nem o susto com a luz, que o homem acende ao entrar na casa, espanta-lhe o cansaço, apegado ao seu corpo em promessas de paixão irrestrita.
Vai até a cozinha, criando um rastro luminoso em pegadas de luzes acesas. Pega um copo no armário, enche-o com água e o entorna na boca com tanta pressa que um fio líquido lhe escorre pelo queixo e pescoço para se represar no leito da gola de sua camiseta.
Tem fome. Mas, sem a mulher, o fogão é um corpo frio, incapaz de murmurar sílabas quentes a criarem o discurso de um jantar.
Enfim o sossego.
Respira o sossego no qual ele não pensa. O sossego fresco e antigo como o de todas as noites, e que guarda o cheiro da idade de seu antigo e imutável corpo, fazendo o homem sentir a paz amorfa de estar livre. O sossego de não precisar pensar, por hoje, na montanha e nas pedras, que estremecem, pois o avançar da noite já ensaia empurrá-las montanha abaixo. Mas resistem, apegando-se ao longo monólogo de escuridão que têm de atravessarem.
Alguém passa na rua.
O homem o sabe pelo modo como o cachorro late a raiva por todos os estranhos - tem o cão também suas pedras para carregar ao topo da montanha de todos os dias.