Uns e poucos
January 22, 2017
Quando os grilos começam a ciciar, hora de as coisas se aquietarem e o tempo se preparar para repousar nos braços escuros da noite, há um badalo silencioso a avisar as pessoas que o dia está ganho, que a pressa já não mais torna cheia a maré das horas, e ela, a pressa, escorre até se tornar uma maré baixa de preocupações adormecidas. O badalo ainda, vagarosamente, nina as pessoas, dizendo-lhes que logo deverão ajeitar seus corpos para o noturno cerramento de olhos.
Mas há pão que se ganha em meio a luzes artificiais, quando o sol é lembrança distante e, o calor do dia, vaga errante por sobre a terra dormente, perdendo-se por entre o vento insone.
De modo que alguns criam os seus dias no escuro das noites. Pessoas que assistem ao perambular, cheio de desconforto, do frescor das madrugadas em meio a postes solidários, a despejarem alentos de jatos de luz. Têm as vigílias acompanhadas pelo sono do mundo, a tornar tudo mais lento, a pedir vozes baixas para prevenir despertares, e a se assustar com a intemperança de carros que deveriam estar recolhidos. Ouvem dos cães dores de lua cheia em longos uivos.
Os insones não pertencem ao mundo desses que trabalham à noite, posto que apenas arregalam olhos para as horas que passam, praguejando contra a maldição acomodada em seus leitos - uma cama que espanta o sono peca contra os sonhos e definha sozinha em secas de lençóis lisos.
Quando a noite se cansa de embalar esse canto do mundo e começa a se arrastar para outras paisagens, os que estavam indevidamente despertos cerram janelas dos quartos, fecham portas e enganam o sono, que, aceitando a escuridão fabricada, aninha-se com eles e deixa desconcertado o dia.
Contrariado, o dia não poupará ruídos para trazer a esses quartos a vigília.
Porque no dia há maioria. E, na noite, pingam gatos.