O diálogo de pedras e passos
February 28, 2016
É sempre nas madrugadas que as pedras das calçadas esperam pelos passos da mulher.
Durante os dias, a polifonia de tantos pés cria o exacerbado falatório de pegadas a dizerem e a desdizerem, moldando a impossibilidade de um discurso.
Sob as luzes cheias de preguiça dos postes públicos, na aconchegante maciez do corpo escuro da noite, aguça-se o que as pedras sentem - a lentidão dos passos da mulher são sílabas soletradas na paciência de um ditado.
O hábito orienta o caminho - e, em todas as madrugadas, os passos da mulher se encontram com as mesmas pedras no tranquilizante diálogo de normalidade das coisas. Os pés sabem onde repetir o acento agudo de palavras mal tocadas no chão; sabem modular o tom grave ao soltarem o peso inteiro da mulher numa pisada acentuada; conhecem o lamento de um arrastar de pés, a cravarem nas pedras o grito seco de uma dor cansada.
É sempre nas madrugadas que as pedras das calçadas esperam pelos passos da mulher.
Sem jamais dormir, mas entregues a uma latência displicente, são colocadas em alerta pela reverberação que lhes percorre os corpos assim que a primeira pedra é tocada. Sempre na mesma hora, que não lhes interessa saber; debaixo de chuva forte ou fina, que lhes é indiferente; em época de calor ou de frio, que pouco lhes afeta. Bastam-lhes a religiosidade do diálogo, a constância do encadeamento de frases, a tranquila fala diária dos pés da mulher em meio à desordem de passos atropelados, que trazem o esgotamento por meio de tantas sensações cruzadas. Essa é a única conversa que entendem.
Mas os passos da mulher não mais virão, são agora mudez absoluta de pés mortos.
Presas à eterna vigília em seus corpos perenes, as pedras nada sabem.
E ainda esperam.