As gêmeas
May 1, 2015
Ao entardecer, deve-se cuidar de não olhar com muita atenção um horizonte líquido e esmaecido de luz.
Olhem-se as águas, seus movimentos desajeitados de corpo líquido incapaz de restar-se quieto. Perceba-se a luz do dia a se esvair numa agonia muda, imposta pela crescente dominação de uma escuridão inegociável. Observe-se a transmutação do céu com a plácida aceitação de se deixar tingir por cores que não lhe pertencem - mas não se deixem olhos fixos no horizonte, no ponto em que água e céu se permitem confundir no toque linear de seus corpos.
Não deixe o olhar repousar ali - é de onde inesperadas visitas vêm.
A insistência em mirar por longo tempo essa linha, que se vai perdendo junto com a tarde, deve ter o poder de invocá-las, pois é somente a teimosia de olhos sobre esse fio, que não se decide céu ou água, que as traz.
As duas gêmeas vão crescendo sobre a água como todas as coisas que emergem do inexistente abismo, que continuamos a crer que exista além do horizonte. Gigantescas, caminham numa marcha suave para se mostrarem gradativamente cabeças, linhas dos ombros, dorsos envoltos em indefinido tecido encarnado e pés, que mal se distinguem, encobertos pela revolta da água por eles lhe ferirem o corpo líquido.
À medida que se aproximam da terra, a noite lhes oculta a grandiosidade; encobre em trevas o escarlate diáfano que as veste; protege-lhes os movimentos, escondendo-lhes as intenções; torna seus olhos faróis cegos e suas bocas a possibilidade escura de trovões calados.
Ao pisarem solo firme, não mais podem ser vistas.
Mas vagarão, pela noite de quem as chamou, no sempre fértil terreno do sonho, a dizerem verdades de um abismo que desconhecemos.